O Senhor Zé tem barba grisalha, com palmo e meio de comprimento, desbotada de muitos anos rendido a esse vício quiçá mortal que é o tabaco. Usa óculos e phones nos ouvidos e admiro como a antena do pequeno rádio a pilhas lhe sai do bolso da camisa. A camisa é agora um parente afastado do que um dia foi uma flanela bonita, cuidada. O Senhor Zé é de uma beleza suja, desgastada por muitos anos de rua e cotoveleiras coçadas no blusão de cabedal. Usa os restos mortais desta extravagância sobre os ombros, como um manto que lhe aporta traços de realeza. Observo-o a uma distância socialmente aceitável mas, no fundo, sou vítima dos meus instintos que me pedem que me aproxime. Os jeans são um sem fim de nódoas mas o Senhor Zé nunca perde a compostura, por muito álcool que lhe corra nas veias. O hálito denuncia-o, quando lhe pergunto o nome,
- José Afonso
e automaticamente me remete para paisagens bélicas pontilhadas a cravos encarnados. Há uma vida pré e pós esse mítico Abril de 74 mas o Senhor Zé pouco me fala nisso. Está mais preocupado com os fiscais, pois não pagou bilhete.
-É raro, menina, juro-lhe. Não gosto de infracções mas hoje teve mesmo de ser.
Mostra-me as poucas moedas que recolhe dos bolsos. Garante-me a sua honestidade e apetece-me passar-lhe a mão pelo ombro e garantir-lhe que acredito. Afinal não é todos os dias que se viaja com um rei de nenhum.
2 comentários:
Ah caraças, que há aqui pontuação de Lobo Antunes e eu AMO a estrutura. Gosto que estejas.. de arestas polidas, na escrita. Coerente, bonito, delicioso!
gostava de ser mais assim, de conseguir falar à vontade com o senhor ao meu lado no metro, de satisfazer a curiosidade e falar sem medos. *
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