terça-feira, 2 de novembro de 2010

Introducing Eva.


O sol batia-lhe na cara, por entre as aberturas da persiana mal fechada. Uma mais valia, já que o despertador não tocara. Saiu da cama com calma e sorriu ao perceber o problema. O velho despertador jazia inanimado por falta de corda. Nunca se rendera às novas tecnologias, ao digitalismo de números geométricos a verde ou vermelho. O tic-tac ritmado daquele velho relógio de corda lembrava-lhe os verões passados no Alentejo, o doce Alentejo da sua alma. Os verões cresciam, com dias que se multiplicavam no calendário e se estendiam infindáveis como hera, na horta dos avós. Herdara deles aquele velho mecanismo tosco em tons de tijolo. O relógio, na sua linguagem monossilábica, trazia-lhe o sabor de sandes de compota caseira e das brincadeiras lamacentas com os primos. Sempre soubera transmutar-se numa Maria-rapaz convincente enquanto, discretamente, inseria a sua meninice no faz-de-conta. Se fosse rainha da fortaleza, teria filhos que cuidar, sem nunca descurar a veia de guerreira. Se fosse empregada bancária, rabiscando cheques caducados que a avó lhes dava, teria um marido em casa, de barriga contestatária pelo jantar. Inevitavelmente as brincadeiras efémeras de imaginários infantis conjugados eram deles e das suas regras. E Eva acordara com um sorriso por relembrar tudo isto. Memórias curtas com os primos, de nomes curtos como o seu. Nunca tivera grande curiosidade em perceber esta tendência de curta nomeação que lhes corria nas veias, herança tão antiga como o relógio cor de tijolo inanimado. Sabia apenas que na vida havia a mesma coerência, como acontecera com o João, por exemplo. O João, de nome dividido em sílabas gémeas, fora como um pontapé no centro do peito. Uma falta de ar, um afogar de uma vida vazia num respirar fundo, renascendo na mornidão de beijos apaixonados. O João que falava da perfeição do sete. Das sete letras, as nossas sete letras, de nomes unidos em laços de mão dada. O João que fora como um sopro de deserto que lhe renovara as brasas da personalidade recatada e adormecida. Eva acordara com o sol beijando-lhe os olhos e agora, que a porta da rua batera atrás de si, este brilhava-lhe no centro do ser.

2 comentários:

mariana disse...

está maravilhoso

qel disse...

ana, tu escreve-me um livro! *