domingo, 25 de julho de 2010

A noite dos tempos.

Desde pequena que a mãe me adivinhava um futuro diferente. O brilho no olhar não enganava, afirmava ela numa premonição de ventre vinculado. E hoje, que já não sou menina de olhos redondos de azeitona, sei dar-lhe razão. Pouco monótona deixei que a curiosidade me guiasse e acabei aqui. Na minha palidez mediterrânea de púpilas dilatadas absorvo em demasia cada estímulo. Aqui as árvores são altas, a vegetação densa e os sons com traços de irrealidade. Habituei-me com facilidade a esta vida selvagem e fiz dos bichos rastejantes companheiros de viagem. Aqui, onde nos encontrámos, há um aroma no ar enegrecido a carvão e eu, contida no meu espanto, apaixonei-me à primeira vista pelos teus traços indígenos. Somos poucos, nós os brancos, comparados com a multidão que popula a tua aldeia, resguardada dos hábitos ocidentais. As crianças correm nuas na clareira e algumas olham-nos com o mesmo espanto que lhes devolvemos. Há diferenças notórias e isso faz-vos rir. Consigo perceber o quão ridículos pareceremos, carregados de material e de roupas inestéticas à vossa realidade desnuda. Aproximaste, andar firme de quem sabe onde pisar mesmo descalço, numa sabedoria recolhida no tempo de uma vida tenra. Temo que não pares e acabas por fazê-lo a escassos centímetros de mim. Como quem analisa uma fruta madura, tocas-me. Os punhos, os braços, a cor da pele passada a dedos ásperos e um olhar hipnotizante onde me perco. Não sei quanto tempo passou quando encostas a tua testa à minha e da tua boca sai um som que ainda hoje não sei descrever. Tens olhos amendoados, negros de alma em festa, e a pele morena, quase vermelha de cacau. Cobre-te o corpo um estampado intricado, fascinante, que não ouso tocar por medo de padrões sociais que desconheço. Aparentemente ultrapassei o teste. Sorris para o resto da aldeia e aprecio-te a dentição imaculada, alinhada numa árida boca limitada a grossos lábios. A noite chega a passos de gigante e aqui e acolá acendem-se luzeiros, enchendo de mística este lugar encantado. A comunicação faz-se por gestos, entre os meus e os teus, e aos poucos somos aceites. Afinal a curiosidade não vive só nos brancos, penso com os meus botões. Hoje, aqui, é noite de festa e acredito que fosse difícil chegarmos em melhor altura. As mulheres da tua aldeia são bonitas. Não bonitas num conceito ocidental, de magreza e perfeição arrancada a bisturis pouco estéticos. Bonitas, numa alma contente e em profunda ligação com um deus sem nome nascido da Terra. Bonitas numa simplicidade de saias de palha e despidas de tudo e todos.
Fico a observar a festa de fora, pelo cansaço e pela curiosidade, num sorriso interior causado por uma descoberta em que poucos acreditaram. Vejo-te dançar e inebriam-me os sentidos cada movimento desse corpo torneado, pincelado a barro lamacento. Ris, como ri um de nós, num inchar e desinchar de ventre e lágrimas caídas das amêndoas escuras que são os teus olhos. De repente, perco-te na multidão em festa e reapareces junto a mim, de braços estendidos como quem dá. Sorrio, ao pensar nisto como uma oferenda de paz, mesmo não existindo guerra entre nós. Pegas-me na mão e levas-me para um recanto, perdido no emaranhado da selva que nos rodeia. Mais uma vez tocas-me a pele a dedos curiosos e eu deixo-me estar nesta posição de material de estudo. Com o indicador amarelado contornas-me o rosto como quem me desenha traços já há muito herdados. Num reflexo abraço-te, sem me preocupar como serão os abraços aqui, ou o que significará tudo isto. O teu tronco largo envolve-me, como gotas de chuva, e decifro o cheiro da tua pele vermelha. Mandioca. Mandioca como a cerveja que me estendeste, num tosco recipiente de cana de açúcar.

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