segunda-feira, 31 de maio de 2010

Três vinténs e o ar de quem não tem muito mais a perder.

Estou sentada no parapeito da janela, consegues ver-me? Descanso o corpo de joelhos juntos e tornozelos cruzados. Apoiada na palma das mãos inclino o tronco para a frente e sinto cada músculo distender. Só não sei desligar o instinto e mantenho o olhar fixo nos corpos que se movem em meu redor. O vestido que trago é tão leve que nem o sinto e é ainda o cheiro a praia que a minha pele emana. A janela está aberta e a brisa morna beija-me as costas, enquanto brinca com o meu cabelo. Vejo-te do outro lado da sala e adivinho o futuro, enquanto rodo o anel de prata no polegar. Fecho os olhos, preencho-me da noite estrelada lá fora e repentinamente compreendo que chegou a altura de os voltar a abrir. Estás a escassos metros de mim. Numa análise rápida, tiro-te a pinta. Chinelo no pé, calças rasgadas e camisa azul. Barba loira e um nariz sardento, que denuncia os primeiros dias de praia. Trazes um copo na mão, um sorriso enigmático e uma onda do teu perfume inunda-me, por estares cada vez mais perto. A palmos imaginários meço-te os ombros largos e escolho-te dois desportos de eleição; o tronco de triângulo invertido denuncia-te como nadador, o charme como predador. É agora. Pousas a mão a poucos centímetros da minha e, sem quaisquer palavras, estendes-me o copo. Agarro-o num gesto firme e as unhas arrancam sons de brinde ao vidro grosso. Num sorriso entre o tímido e o inebriante aproximo o copo dos lábios, com uma dúvida que só um olhar que evito, poderia denunciar. Confio no único sentido que nunca me falhou, o olfacto. Decomponho o conteúdo do copo e inevitavelmente fazes-me sorrir. Martini bianco, duas pedras de gelo, meia rodela de limão. Doce veneno, meu querido, é o que penso sem o articular em voz alta. Vejo como as púpilas se te dilatam, ao meu gargalhar, também ele inebriante. Vejo como procuras ansiosamente o rótulo que não possuo, numa tentativa de descobrir a percentagem de sedução neste estúpido jogo em que nos envolvemos. Apetece-me dizer-te que estará a par e passo com o álcool desta distinta bebida, com que planeias abrir portas. Faço-te um sinal discreto, permito que te aproximes mais. A tua camisa toca-me os ombros nús, sinto o teu respirar na nuca. Vais contar-me um segredo e humedeço os lábios, em jeitos de respiração profunda para o último salto.
- Acertei?
- Em cheio.
É agora a minha vez de te fazer sorrir e são pequenas formigas que me percorrem o corpo quando o fazes. Não o dou a entender e está escuro o suficiente para não veres como coro ligeiramente, em antecipação da tua próxima cartada. Vieste até mim com passos firmes, como quem corre para a liberdade do mar e nunca, na curta distância que nos separava, vi cadeados na tua mão, na largura do teu tronco, na cicatriz do teu joelho. Bebo mais um gole, inclino o corpo e o copo para ti. Passas-me o indicador pelo lábio inferior, desvias-me uma madeixa de cabelo dos olhos e sussurras-me o apetite que te desperto, com o meu cheiro a fruta madura. Deixo que me passes o braço pela cintura e lembro-me do Palma, deixa o teu fogo envolver-me, até a música acabar. Sei que consegues ouvir-me fora de tom, na minha própria cabeça e foi por isso que escolheste brincar comigo. A noite é longa. Afinal de contas, ainda agora me caiu o chinelo do pé.

3 comentários:

Anónimo disse...

Já não ouvia o meu á um certo tempo, mas agora que o ouvi entendo-o. Tu escreves tão bem Ana.

mariana disse...

este está lindo, como sempre (:

beijinho*

Anónimo disse...

Que texto incrível.