terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Lisboa é uma aldeia.

O Abílio é mais um lisboeta como tantos outros. Veste-se de maneira modesta mas caminha triunfalmente, Braancamp acima, em direcção à paragem do autocarro. Míope como só ele franze o sobrolho ao tentar avistar os minutos que faltam para o próximo veículo chegar e lança um suspiro de impaciência, para que a paragem inteira perceba a sua insatisfação. Enverga um blusão que o meu parco português não consegue descrever. Qualquer coisa entre o polar e a flanela, ou um encontro dos dois, em tons de cinza, azul e branco. Não, não é um deleite para a vista, assim como os tênis coroados de caveiras, tentativa falhada de alguma rebeldia. O Abílio, que podia muito bem ter sido baptizado de outra banalidade qualquer, cospe para o chão e arrota alto, como quem se está a borrifar para as conveniências de uma sociedade que não compreende. Não tem ouvido para a música e fala muitos decibéis acima do suposto, ao telemóvel, enquanto dá os parabéns à Paula que faz anos e deve ser surda. Ou isso ou tem o aparelho estragado. Gosta que todos saibamos que mudou de tarifário porque ser moche não compensava, já que o patrão não é e é para ele que faz mais chamadas. Talvez não perceba, oculto pelas muitas dioptrias, o riso contido nos que o rodeiam de cada vez que ele próprio ri, roncando. Começa a notar-se a queda de cabelo que tenta esconder com um risco ao lado geometricamente desenhado e é mais um, entre tantos outros. Tem no rosto estampada a infância bairrista, talhada pela ausência paterna e por uma pobreza humilde, das que não envergonham o próprio mas embaraçam o meio mundo fútil com que se cruza. Denuncia um emprego e um viver modestos em tudo, especialmente na carteira de pele sintética, invólucro do passe social, calejada de tantos trajectos diários. O Abílio, que podia muito bem chamar-se Augusto, olhou-me hoje com olhos de menino assustado, provavelmente pela minha altura pouco comum ou pela argola no nariz enquanto esperávamos o autocarro e apeteceu-me dizer-lhe que faz lindamente em cagar de alto para uma cidade grande demais para lhe apreciar os detalhes.

7 comentários:

P! disse...

Lisboa é tão pequena, mas para nós chega :P
PRECISO de TI URGENTEMENTE :D

Anónimo disse...

Adorem!

Anónimo disse...

perfeito

Margarida disse...

eu gosto tanto desses Abílios de lisboa!

Mg disse...

Ainda há pessoas simples :) Gostei muito!

Anónimo disse...

Até te digo mais: Olha Abílio, anda cá que precisamos de conversar! Diz que tenho umas merdas a aprender contigo! xD

Joana M. disse...

Gostei imenso deste texto pela diferença que marca com o que se diria "costume teu". Adorei que usasses a expressão borrifar e retomasses o "O Abilio, que podia muito bem chamar-se Augosto". Ninharias num texto tão forte, é certo, mas que me marcaram.